Pelas nossas Azurduys de todos os dias

O taxi vinha pelo centro da capital argentina. Passávamos pela Casa Rosada e ali, bem em frente ao núcleo do poder executivo, erguida em bronze e com a espada na mão, posava Juana Azurduy. Eu não a conhecia e o motorista me explicou que era a “nossa Maria Quitéria”. Ele fazia referência à minha brasilidade e ao papel que tiveram as duas mulheres na luta pela independência das colônias vizinhas.
Nascida em Potosí, atualmente território boliviano, Azurduy lutou contra os espanhóis nas guerras de independência hispano-americanas do Vice Reinado do Rio da Prata. A estátua foi posta no lugar de Cristóvão Colombo, que por 92 anos havia fincado pés de mármore no mesmo lugar. A estátua do navegador, doada à Argentina em 1921, caducou assim como o espírito de uma época e, em 2013, foi transferida para a cidade de Mar del Plata. Desde então, é a guerreira da independência quem ocupa o pedestal.
O episódio me desconcertou. Primeiro, porque era um rompimento com o colonialismo patriarcal e eu, como brasileira, estou mais acostumada com o contrário. E depois porque evidenciava a limitação das minhas referências. Eu não conhecia Azurduy, sabia pouco de Maria Quitéria e não lembrava de um monumento a mulheres que fizeram História no Brasil. Era mais grave, eu não conseguia me lembrar de personagens femininas da História do país. Fui listando mentalmente nomes e quanto mais crescia a lista, maior era a discrepância de gênero. Índias e negras estavam ausentes, eu não conseguia lembrar de um nome sequer.
Insisti por dias em lembrar de mais personagens mulheres e nada. Recorri então à memória coletiva institucional. Titubiei sobre a fonte e resolvi buscar uma relação que tivesse passado por critérios de alguma natureza e refletisse o que, em tese, a maioria do nosso país classifica como personagens marcantes. Fui ao arquivo virtual do Congresso Nacional e procurei leis que versam sobre a inscrição de brasileiros e brasileiras no Livro de Heróis da Pátria (ou Livro de Aço). Encontrei 46 heróis e heroínas [1]. O número reduzido me surpreendeu, mas entendi que é uma lista que vem crescendo nos últimos anos. Outra surpresa, esta sem consolo nem justificativa, apenas três mulheres: Anna Nery, Anita Garibaldi e Bárbara Pereira de Alencar.
Não esperava igualdade de gênero, mas os 6% de representação das mulheres ultrapassou qualquer expectativa conservadora. Busquei então propostas de lei que, oxalá, estivessem circulando no Congresso para mudar o cenário. Encontrei projetos de lei em tramitação com pelo menos outros 22 nomes sugeridos para inclusão no Livro de Aço, dos quais 5 são mulheres – Maria Quitéria, Jovita Alves Feitosa, Joana Angélica, Maria Felipa de Oliveira e Clara Camarão [2]. Se todos os nomes propostos entrarem no Livro, teremos 12% de mulheres reconhecidas por terem “oferecido vida à pátria, para sua defesa e construção, com excepcional dedicação e heroísmo”.
Mais uma vez me desconcertei. A sensação era parecida com o que  senti com Azurduy em frente à Casa Rosada, mas na direção oposta. Afinal, não era minha a omissão de personagens mulheres na História do Brasil. Aparentemente, ficamos nós mulheres nos bastidores, na plateia e no lar enquanto o país se constituía. Ou teremos ficado para trás, apagadas nas narrativas dos historiadores e encurraladas entre a condicionante máxima de ser homem para ser herói?
Uma lista institucional de pessoas reconhecidas por dedicação à sociedade não é só um adereço e a ausência de mulheres não pode ser um incidente. Listas deste tipo definem perfis que se instalam no imaginário social e formam expectativas, escolhas, posicionamentos. Para construirmos histórias de, por e com mais mulheres precisamos virar do avesso a forma como contamos a nossa própria História.
A recente campanha contra o modelo ideal de “recatadas e do lar” é uma contribuição importante para expandir o imaginário sobre a contribuição das mulheres na sociedade.
Desde que encontrei Azurduy e descobri o Livro de Aço, ando na busca por movimentos como esse, que libertem a imaginação sobre quem e como se faz História. Ando buscando símbolos que virem do avesso preconceitos. Ando buscando estátuas de mulheres, protagonistas de saias, milagres femininos, mulheres nada recatadas. Ando buscando evidência do que existe por aí aos montes – mulheres que fazem diferença e não levam para casa o posto “do lar”. Graças às mulheres do Brasil, não tem sido difícil encontrar.
*Paula Ellinger é brasileira e cidadã do mundo, formada em Relações Internacionais,  atua em facilitação de processo sociais e inovação.

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(1) 45 pessoas e o grupo de Seringueiros Soldados da Borracha, cujos nomes não são citados.
(2) Segundo pesquisa por atividades legislativa no Senado em 03/2016 –http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/84397

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